21 de set. de 2009

Dias de Tiete


Soube por meu filho Daniel que a Prefeitura estava fazendo melhorias numa rua perto de casa. Fui lá conferir. Em frente a tal rua, tapando a UPA inaugurada nas últimas eleições, um pintor retocava a pintura de um conjunto de casas... Engraçado... Eu não me lembrava dessas casas, e olhem que conheço o lugar há muito! E não eram casas construídas recentemente, tinham aspecto antigo, mais ou menos no mesmo estilo das edificações da Escola Mauá, adjacentes.
Entrei na rua meio desconcertado. Um pedreiro dava os últimos retoques no canteiro central, construído em alvenaria e dividindo a rua larga em duas pistas. Alguns muros já restaurados e outros sendo reformados. Um pintor retocando a fachada de um sobrado e alguns portões aparentando pintura fresca. Um caminhão com mudas de plantas e placas de grama abastecia os jardineiros. Na calçada, uma árvore taluda plantada recente.
Não parecia obra da Prefeitura. É verdade que alguns garis varriam a rua, mas só. Os outros trabalhadores seriam, quando muito, terceirizados a serviço do município. Ou teriam os moradores se organizado em condomínio para realizar melhorias naquelas duas quadras?
Retornei a casa um tanto preocupado. Distraído sou, os que me conhecem não ignoram, mas aquelas casas em frente à UPA, como não me apercebi delas? Que horror estava ficando a minha memória! Ou será que... o Alzheimer...
No dia seguinte, uma segunda-feira, voltei ao local disposto a examinar melhor, mais atento e de espírito prevenido, pois decerto alguma coisa diferente estava acontecendo ali. E estava. O casario que me levou a duvidar de minha memória não passava de um cenário! Na rua, carpinteiros serravam, martelavam, construíam canteiros de madeira, que os pedreiros assentavam nas calçadas e os jardineiros enchiam de terra e plantavam mudas e grama. Outros carpinteiros faziam uma garagem num dos sobrados. Postes antigos eram montados no canteiro central. E a árvore taluda era de plástico, como os postes. Um Cenário! Um set de filmagem! Reparando melhor, vi que as pinturas executadas aparentavam mal feitas, para dar maior realismo.
Não é a primeira vez que Marechal Hermes serve de locação para uma produção cinematográfica ou televisiva. Nem será a última. Isto se deve à presença de muitos casarões e sobrados antigos, de estilo eclético e bem conservados, apesar de uma ou outra descaracterização nas janelas, mas no todo ainda bastante autênticos. Bom cenário para histórias ambientadas na primeira metade do século passado. A sobrevivência de tais prédios decorre, principalmente, da limitação de gabarito, pela proximidade do aeródromo militar do Campo dos Afonsos.
Indaguei de um operário se era novela, disse-me que não, era um filme de Arnaldo Jabor.
Ah! eu não podia perder o espetáculo. E no dia seguinte fui ver o andamento das atividades no set. Caminhões despejavam equipamentos os mais diversos. Os derradeiros toques de pintura. Tendas sendo montadas. Três carros de época lindos trocavam de placa: DF – 1945. Um formigueiro de técnicos invadira o set. Agitação. Um sobradinho improvisado em camarim. No jardim de outro sobradinho, o mais bonito da rua, preparava-se uma cena. Atores caracterizados. E o Jabor já estava lá, circulando, orientando, simulando com as mãos a tomada de câmera. Que lindo era tudo aquilo!
Fui para casa tomar um café e contar as novidades. Mais afastado do set, um gerador pronto para funcionar, cabos estendidos na rua.
De volta, procurei um posto de observação sem estorvar quem trabalhava. Um carro aproximou-se querendo atravessar o set, por entre a parafernália de equipamentos espalhados na rua. Um guarda interveio. O motorista explicou que era morador e precisava passar. Passou e entrou na garagem do último prédio. Poderia tê-lo feito pela outra rua, mas preferiu atravessar o set. Vá entender...
Atores e atrizes em posição, Jabor sentado na cadeira de Diretor, técnicos ao redor. Claquete. Silêncio, por favor! Gravando...
Não dava para entender as falas dos intérpretes, só gritos, risos, gargalhadas, muita alegria... Em meio aos cochichos dos espectadores, soube o título do filme: Suprema Felicidade. Técnicos correm com uma tela enorme e a colocam tapando a cena. Que seria aquilo? Eu não conhecia. Repetem a gravação. Não ficou boa. Montam um refletor por trás da telona. Agora sim, ficava clara a sua função, é um difusor de luz, ilumina a cena suavemente, sem o contraste forte da luz direta. Silêncio! Não se assustem, vai ter tiro, mas é de festim. A guerra acabou! A guerra acabou! Aaaaahhh!!!... E quatro tiros ecoam no ar.
O personagem que dá os tiros é um oficial da FAB comemorando com a família e vizinhos o término da II Guerra Mundial. O ator é conhecido, mas não atino com o nome dele. Será Caco Ciocler? Mais uma vez gravando, a pistola engasga. Atenção, efeitos especiais. Repetem uma, duas, três vezes mais, e finalmente está pronta a cena. Muito bom, vamos almoçar agora.
Fui também. Eram duas horas da tarde.
Suprema Felicidade. Fim da guerra, retorno dos nossos pracinhas, queda do Getúlio, fim da ditadura do Estado Novo. Redemocratização do país. É muita felicidade junta. Para ser maior – suprema – só falta a história terminar com folia carnavalesca, um desfile de bloco ou escola de samba, ou até mesmo uma batalha de confete. Lembram disso?
Para os mais novos eu explico: batalhas de confete eram bailes pré-carnavalescos de rua. A vizinhança se organizava, enfeitava a rua com bandeirinhas e o mais que pudesse, instalava gambiarras de luz, alguns altofalantes e um tocadisco com amplificador e microfone. E o samba rolava noite afora!
Eu chegara, ou melhor, retornara ao Brasil em janeiro de 1957, um pouco antes do carnaval, portanto. Dez anos de idade. Ouvi falar de batalha em nossa rua e pensei logo em violência, brigas, para depois constatar que na tal batalha não havia balas nem canhões, mas pandeiros, cuícas e tamborins, muita alegria, dança e cantoria. Que país bacana aquele, em que uma batalha nada mais era que uma grande farra!
De novo no set. Um grupo de figurantes acabava de ensaiar a sua atuação. Um maquiador dava os últimos retoques nos foliões, que iam festejar o fim da guerra em frente à residência dos personagens da sequência anterior, com direito a espancamento de um Judas de farda e bigodinho de Hitler. Foi preciso repetir a atuação dos personagens principais, incluído aí um beijo apaixonado do casal.
Um senhor acercou-se de mim querendo saber do que se tratava. Disse-lhe o que sabia e o que não sabia:
- Está vendo aquele ator, aquele de túnica azul aberta no peito? É o Caco Ciocler.
A minha fala chegou até um grupo de senhoras que fotografava de longe os artistas e se dispunham a pedir autógrafos, Tietes de verdade, não como eu, tímido e discreto no meu canto. Uma delas olhou-me, espantada com a minha ignorância.
- Moço, não é o Caco, é o Dan Stulbach.
Agradeci o aparte meio vexado e resolvi calar a boca para não dar mancada. Eu não estava ali tietando artistas, ídolos, mas todo o set e o que acontecia nele. Admirava tudo: cavaletes, escadas, tripés, refletores, as telonas, que mais tarde soube terem por nome butterfly, os carrinhos lindos e outras peças cenográficas; e os atores, atrizes, figurantes e suas atuações; e os técnicos de som, de fotografia, os iluminadores, eletricistas e maquinistas; as camareiras, os maquiadores e as meninas do bufê. Tudo. Admirava com olhos embevecidos aquela agitação laboriosa, aquele furdunço organizado e criativo.
Encerradas as gravações, Jabor passou por mim, orientando o Diretor de Fotografia quanto às tomadas de cena do dia seguinte. Vontade de cumprimentá-lo: "Tudo bem, Jabor? Que bom que tenha voltado ao cinema". Mas a timidez não me deixa externar tais manifestações de apreço. Infelizmente.
Manhã do dia seguinte. Ensaio. Cena de rua: um comprador de jornais velhos apregoa o seu trabalho, um carro sai da garagem, um ciclista transita, estudantes vão à escola, pedestres. Fico olhando os adereços amontoados na calçada: vassouras de palha, um par de muletas, um realejo. Há quanto tempo não via um realejo desses! Será que vai ter periquito tirando a sorte? Silêncio! Vai gravar. Ouve-se o pregão do velho comprador de jornais... E algazarra de estudantes chegando ao set por uma rua lateral. Por favor, gente, estamos gravando, falem baixo ou se afastem. Afastaram-se, irrequietos e ruidosos, aparentemente interessados apenas nos seus folguedos.
Nunca é de primeira uma gravação dessas. De uma vez foi o carrinho lindo que engasgou em cena. Felizmente fora uma indisposição passageira. De outra, a bicicleta quebrou. Buscaram a reserva, que a equipe é precavida. A cena em geral ficou boa, mas precisam repetir a sequência em que o velho compra jornais e conversa com a esposa do militar que eu pensei que era Caco e era Dan. Qualquer ruído complica. Barulho de vassoura de piaçava varrendo a calçada áspera e lá vai o técnico de som, por favor, senhora, o microfone é muito sensível, desculpe. Obrigado, senhora. Gravando de novo. Silêncio! Estrila o celular no bolso de uma mocinha! Por favor, meu bem, desliga o celular, o microfone é supersensível e o toque saiu na gravação. A mocinha fica sem graça, sob o olhar de censura da assistência. E eu fico irritado com essas interferências. Ô gente! Ô vassoura! Ô celular! Mas o Jabor é calejado nisso...
Terminada a gravação com sucesso, um senhor se aproximou a puxar conversa comigo. Está impressionadíssimo com a trabalheira para se aprontar uma fração diminuta do filme. Alimentei o papo referindo a pré-produção: dias e dias de planejamento, pesquisas, contratos, requerimentos, autorizações, aquisições, locações; o trabalho de figurinistas, costureiras, cenógrafos... E a pós-produção: laboratório, montagem, sonorização, essas coisas industriais... Muito trabalho e despesa!
- Pois é, e depois vem um qualquer e rouba tudo isso e lança uma cópia pirata no mercado. Eu é que não compro mais – terminou o senhor.
Eu não sairia do set sem ouvir exatamente o mesmo de outro senhor, com o qual concordei plenamente. Piratas, para mim, só aqueles de perna de pau, tapa olho e papagaio no ombro. Os de hoje são um horror. E mais perniciosos.
Fui almoçar. Quando retornei para as gravações da tarde, fui barrado pelos seguranças. Só os moradores tinham acesso... Acabaram com o meu brinquedo.


Julho de 2009

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