16 de out. de 2009

Fiscalização


Tomo um remédio diariamente, um complexo vitamínico antioxidante para combater os radicais livres que atuam no meu olho esquerdo (e em outras partes do corpo – são livres, pois não?). É de uso contínuo e fornecido por uma farmácia de manipulação mediante formulação própria. Nenhuma outra o produz. Tomo duas cápsulas ao dia, sessenta ao mês.
Por estes dias liguei para a farmácia encomendando a cota mensal. Fui informado que a receita existente junto ao meu cadastro estava vencida (prazo de um ano), carecia atualizá-la, sem o que não poderiam me fornecer o medicamento, a fiscalização exigia, etc.
No dia seguinte (hoje) fui à oftalmologista com a receita vencida para que me desse outra. Não era a profissional que me dera a receita anterior, mas voltei com a receita nova e passei-a por fax à farmácia. Em seguida telefonei para encomendar o medicamento.
- Senhor, tudo bem, a receita está aqui, com a prescrição médica e data de hoje, com a expressão uso contínuo por um ano, como exige a fiscalização, mas está faltando a formulação, que deve ser indicada pelo médico, como exige a...
- Mas a fórmula é a de vocês, a mesma que está na receita anterior. Além do mais, trata-se de vitaminas, que problema há nisso, por que tanto rigor?
- Problema tem sim, nas dosagens; se o médico não indica, a responsabilidade é nossa, a fiscalização...
- Está bem, minha filha. Hoje não dá mais, mas segunda-feira volto à oftalmologista e mando nova receita pra vocês, como manda o figurino da fiscalização.
Senti-me rigorosamente fiscalizado. Mas tinha razão a atendente, tinha razão a farmácia, e tinha razão a fiscalização! Assim é que tem de ser! Vá que a oftalmologista queira assassinar o meu olho esquerdo, ao invés de preservá-lo!
E que bom saber que a fiscalização fiscaliza com rigor e a empresa cumpre rigorosamente os preceitos da fiscalização!
O que falta neste país é fiscalização.
Ponham os fiscais na rua, fiscalizando. Ponham batalhões de fiscais nas fronteiras, coibindo a entrada de armas, drogas e contrabandos de toda espécie. Inundem a Amazônia com torrentes de fiscais. Que todo madeireiro ilegal, todo incendiário tenha um em seus calcanhares. E os traficantes da biodiversidade idem. E que toda sorte de traficante ou pirata esbarre num fiscal.
Cortem pela metade as vagas de senadores, deputados e vereadores (não fariam falta) e façam deles fiscais. Desatulhem os gabinetes com ar refrigerado e ponham os funcionários excedentes e os aspones de qualquer natureza para fiscalizar os fiscais. E nomeiem fiscais para fiscalizar os fiscais dos fiscais.
Fiscalizem, fiscais, e depois não digam que não sabiam de nada!
16 de Outubro de 2009

5 de out. de 2009

Crônica de um Amor Impossível


Nunca gostei de ter animais em casa. Nada contra animais domésticos: não gosto é do trabalho que dão. E animais têm de ser bem tratados, caso contrário é melhor não tê-los.
Mas a minha mulher não pensava exatamente assim, gostava de animais, e pronto. Um dia comprou um pequeno viveiro e um casal de periquitos australianos lindos de morrer. Como eu pensava, sobrou para mim: alimentação, troca de água, limpeza do viveiro, era comigo mesmo. E mais: o viveiro ficava no terraço e não havia um lugarzinho em que os bichinhos ficassem completamente protegidos do sol e do vento, que às vezes soprava forte e, para resguardá-los, eu precisava mudar de lugar o viveiro duas vezes ao dia, de manhã e à tarde. Entenderam por que não gosto de animais em casa?
E como se não bastasse, veio a minha mulher com mais um periquito, que lhe dera a vizinha. Um periquito verde, brasileiríssimo. Dei-lhe por moradia o segundo andar do viveiro.
E assim fiquei, cuidando dos três periquitos. E observando o comportamento deles.
O periquito verde era triste e quieto, conformado ao cativeiro, distante da alegria irrequieta e barulhenta de seus irmãos em liberdade. Os australianos pouco diferiam disto, apenas se movimentavam mais.
Mas uma coisa me intrigava. Periquitos são aves geralmente carinhosas, vivem se tocando, ajeitando as penas um do outro, brincando, aos beijinhos, por assim dizer. E os meus australianos não procediam assim, ficavam juntos, mas era como se estivessem sós ou brigados. Estranho. E sendo um casal, mais estranho ainda. Seriam mesmo macho e fêmea? Como identificar-lhes o sexo?
Recorri a uma enciclopédia. O sexo dos periquitos australianos se identifica pelo bico, ou melhor, pelo nariz: é azul a área ao redor das narinas, no macho; na fêmea, bem clara.
Então eu tinha um casal de periquitos, sem dúvida. Um deles, de um azul celeste lindo, estriados o dorso e as asas, e azul o nariz, era o macho; o outro, todo branco com reflexos amarelo-claro e nariz quase branco, era a fêmea.
Apesar disso permaneciam em atitude de casal brigado; nada rolava entre eles. Será que o macho não era chegado? Ou eram ainda muito jovens?
Abreviando a história desse estranho casal: a periquita fugiu. Escapou quando os meninos mexeram na portinhola do viveiro.
Condoído com a solidão repentina do periquito, resolvi mudá-lo para o compartimento superior, onde estava, também solitário, o periquito verde. Assim ambos teriam, ao menos, companhia.
Mas não é que o periquito australiano mudou completamente de atitude! Achegava-se ao periquito verde, mordiscava-lhe as penas, beijocava, assanhava-se todo! Precisamente o comportamento que eu esperava dele com a periquita fugida.
E mais uma descoberta, esta de outro modo impossível: o periquito verde era fêmea. Não havia o que duvidar, o instinto animal não se engana: uma periquita verde, sim senhor!
Mas ainda havia o que decifrar. Por que não rolara nada com a periquita fugida? Era tão graciosa e delicada, pezinhos rosados e olhinhos vermelhos, um luxo, uma princesa!
Voltei à enciclopédia disposto a desvendar o mistério. Recomecei a leitura do ponto que terminara e já na página seguinte ficava esclarecido: a periquita fujona não era periquita, mas um macho albino! Daí o equívoco. O nariz era quase branco não por ser fêmea, mas por ser albino! E eu que chegara a duvidar da virilidade do periquito australiano!
Mas deixemos o periquito fujão e voltemos aos dois outros.
O assédio era constante. O australiano não sossegava nem dava sossego à brasileira. Empertigava-se todo, mostrando-se belo e elegante em sua casaca estriada, saltitava, rodeava a periquita, cobrindo-a de carinhos e chilrados ao pé do ouvido. Ela nem ligava, impassível e fria. O máximo que fazia era esquivar-se. Ele não desistia. E no auge do assanhamento intentava acasalar, escalava com dificuldade, pois em nada colaborava a periquita; escorregava, tenteava, equilibrava-se, mas a periquita derrubava-o com um derrear de asa.
Eta! periquita difícil!
Ela até que era paciente com o atrevido galanteador, mas tudo tem limite e às vezes se aborrecia, avançava zangada, pondo-o à distância. Acalmava-se o periquito, para voltar à carga mais tarde.
E ao voltar, a periquita inclinava a cabeça e olhava-o de través, como quem diz: "Vê se te enxerga, atrevido! Vai procurar as da tua espécie e me respeita! Seu devasso!".
O periquito nem se abalava com as reprimendas. Vergonha já não tinha, nem brio, se é que algum dia os teve; nem preconceito de cor ou de espécie; tinha urgências a saciar, isto sim, e no cativeiro não havia escolha: não tinha tu, ia tu mesmo.
Era muita cara-de-pau!
A periquita evidentemente não tinha culpa daquela situação aflitiva; não era questão apenas de má vontade ou recato de costumes: é que não havia química entre eles, literalmente falando, os feromônios não combinavam. Ela se comportava conforme aos determinismos naturais da espécie, inscritos no instinto e balizados pela bioquímica. O australiano é que era um degenerado.
E assim passaram-se os dias: o periquito em desespero viril, se lixando para os feromônios; a periquita irredutível, fiel à espécie.
Até que um dia o periquito amanheceu caído, morto. Que teria acontecido? Pensei logo em brigalhada entre os dois, o periquito levando a pior. Ou o seu coraçãozinho não resistiu à tensão que o consumia? Nada disso, creio. Às vezes eu esquecia de protegê-los com uma toalha pendurada na lateral do viveiro. De madrugada ventara muito e a temperatura caíra. Com certeza rajadas de vento frio mataram o periquito galante e algum tempo depois a periquita intransigente amanheceu nas mesmas condições.
Salvou-se o periquito albino, se não sucumbiu à liberdade.
Mais uma razão para não ter animais em casa, se não sabemos ou não podemos cuidar deles como é devido.

 
Agosto de 2009

3 de out. de 2009

Aniversário




Fiz 63 anos há dias. Yasmin veio com a mãe e mal chegou entregou-me o presente. Sorriso e olhar de expectativa enquanto eu o desembrulhava: era uma camisa polo.
- Gostou, vô?
- Gostei, é muito linda – disse, mesmo que não fosse diria que sim, mas era de fato.
Depois da chaleirice de sempre e de palrar um bocado, perguntou:
Vô, vai ter bolo?
- Não sei, só se a vó encomendou em segredo, pra fazer surpresa.
Disse por dizer, sabia que não tinha bolo, nem docinhos, nem croquetes; o que havia era um almoço melhorado com dois pratos, lasanha e camarão com chuchu, refrigerante e uma garrafa de vinho, que me dera o meu cunhado Bil. E uma sobremesa caprichada e talvez pastéis.
Convidados também não havia, além da menina e sua mãe.
Nesta altura eu já não ligo para aniversário, se é que algum dia liguei. Nem há por quê: a coluna dói, o joanete incomoda, a vista não dispensa óculos, o topete desapareceu há muito e o vigor diminui a conta-gotas, mas implacável; os anos pesam cada vez mais, os sonhos ficaram longe... Comemorar o quê? Aniversário agora é mero evento contábil - somar um ano aos muitos já passados. Em suma: é diminuir o tempo de validade!
Prefiro gastar dinheiro em coisas mais úteis ou interessantes, como passar um fim de semana em Parati, por exemplo. Ou comprar um bom livro, ou...
Mas como afinal o bolo não apareceu, Yasmin declarou-me, debruçada em meus joelhos, com o indicador apontado em minha cara e ar de censura e decepção:
- Vô, eu não venho mais no teu aniversário, porque não tem bolo nem docinhos. Nem parabéns, nem festa. E não vou mais te dar presente! Nunca mais!
Conheceu, mané? Aniversário tem de ter bolo e apagar de velinhas, parabéns e presentes; tem de ter brigadeiro, cajuzinho e olho de sogra, balas, salgadinhos e refrigerantes.
Aniversário é festa, senão para o aniversariante, para os outros.
Pensarei nisso para os anos vindouros, sob pena de não ganhar presentes da Yasmin.


Setembro de 2009

1 de out. de 2009

Por que Vô Tônico?




João Antonio batizado,

Por Toninho conhecido;

Tonho e Tonico por fim,

Mais o Tônico consagrado

Da netinha Yasmin.

Crianças!


Crianças às vezes nos deixam sem graça com as perguntas que fazem. E sem respostas.
Estávamos eu e alguns familiares nas areias de Maricá, sob cobertura improvisada com folhas de coqueiro. Eu molhava o bico e olhava o mar, sem vontade de ler o jornal sobre a mesinha: meus olhos tinham mais com que se deleitar. No horizonte nevoento, uma silhueta imprecisa navegava. Mais ao perto, ondas vigorosas arrebentavam na praia em turbilhões de espuma: era mar aberto, naquele dia impróprio ao banho. Entre banhistas e guardassóis coloridos passeavam meus olhos. E o sol, coando entre as folhagens da cobertura, tecia um rendilhado de luz e sombra nas mesas, nas pessoas, na areia próxima...
A meus pés brincava Yasmin, cavando na areia fantasias. Dois aninhos, pouco mais. Outras crianças se achegaram. Uma menina mais velha, uns cinco anos, por aí, começou a brincar como se Yasmin fosse uma boneca, que realmente parecia, como toda criança na sua idade. Desconhecia o perigo a menina, e eu fiquei de olho. É que a pequena costumava morder quando se via aperreada, e era o que acontecia, com a outra abraçando, apertando, alisando...
A menina ofereceu biscoitos, e Yasmin ocupou seus dentinhos de forma mais civilizada. Sosseguei.
Foi quando a menina, ajoelhada na areia, levantou o olhar, quem sabe reparando nos meus cabelos grisalhos e na barba por fazer, e disparou a pergunta:
- Você é Deus?
- Não, não sou Deus.
- E onde é que está Deus?
Surpreso com as perguntas e sem tempo para refletir, levantei o indicador para o alto e respondi:
- Dizem que está lá em cima...
Descrente no olhar, a menina me fixou por mais alguns instantes, esperando talvez outros esclarecimentos, e nada mais obtendo baixou a cabeça e retomou o brinquedo com Yasmin.
Também, com a resposta idiota que dei, quem haveria de prosseguir a conversa?
E o que sei eu de Deus?
Mas podia ter-lhe dito que Deus está dentro de nós, no amor que sentimos, ou como dizia o poeta*, está "nas árvores e nas flores, nos montes, no sol e no luar", nesse imenso milagre que é a vida... Ou que Deus está onde O queremos ver...
Certamente nem isso contentaria a menina. Ela buscava, pelo visto, um deus concreto e pessoal, com barbas e cabelos brancos e jeito de avô, com o qual haveria de conversar e passear na praia, e a quem pudesse metralhar com um montão de perguntas e ouvir as respostas, sem idiotices e enrolação.
Também eu gostaria de ouvir as respostas. Continue perguntando, menina.
*Fernando Pessoa
Julho de 2009


Louvação





(poema lido em cima do caixote, na praça XV de Novembro, Marechal Hermes, durante o evento Literatura de Segunda, em 22-06-2009 e mencionado na crônica Privilégio)






Meu pai

Não foi herói nem guerreiro;

Foi trabalhador –

Carvoeiro.

D'além- mar veio procurar,

Com esforço, o sonho seu.

O procurado – nunca achou;

E o que achou – perdeu.

Já minha mãe foi camponesa;

Do inverno ao verão

Em campos de trigo e milho

Cavou-nos da terra o pão.

E no descanso fiava,

Rezava,

E contava histórias ao redor da lareira.

Não foi santa nem guerreira.

Minha mãe foi apenas –

Mãe!