30 de jan. de 2010

Espelho, espelho meu


De uns tempos para cá tem-me ocorrido situações para as quais eu não estava preparado. Durante largos anos adotei por hábito, nas conduções cheias, oferecer meu lugar às pessoas idosas, senhoras com crianças, gestantes, enfim, a quem mais necessitava de descanso e conforto, se é que se pode falar em conforto em nossos transportes públicos. Pois agora chegou a minha vez de aceitar tais gentilezas.
Mas eu não estava preparado, repito. Não me sinto velho, embora meus cabelos brancos denunciem o meu tempo. Da primeira vez que me ofereceram um assento, recusei: "Não, obrigado, minha filha, estou bem". A mocinha insistiu: "Sente, senhor, faço questão". Agradeci com um sorriso amarelo e sentei-me sem olhar para os lados, temeroso de cruzar com algum olhar de censura por aquela regalia indevida. Mas os meus cabelos brancos atestam o merecimento e me absolvem. Outro fato que me denuncia é esse meu jeito de tratar por filhos as crianças e os jovens. Quando tratamos por filhos os filhos de outrem, é porque já somos avós (ou temos idade para tanto).
Há que se louvar os jovens, porém: nem tudo se perdeu na corrida do tempo. Se bem que há os que sentam nas cadeiras reservadas aos idosos e fingem dormir. Devem ter lá suas razões para tal atitude: ou estão deveras cansados, ou envelheceram precocemente...
Mas eu nem ligo, não me sinto velho...
Agora já estou acostumado com a eventual gentileza no ônibus lotado, mas numa das últimas vezes que me ofereceram assento, ao chegar a casa fui direto ao espelho. Olhei-me de frente, de perfil, de três quartos. Nada estranhei. Parecia que sempre fora assim, nada mudara. É verdade que no alto da testa já não existem cabelos, mas os que restam – brancos! – me dão um certo charme, um ar de dignidade e respeito... E a testa larga em conjunto com os óculos de aro fino me dão aspecto de intelectual, que evidentemente não sou, mas pareço... "O Tempo não deixa que percebas os estragos que ele próprio inflige às suas criaturas" – disse-me o espelho, filosoficamente, olhando-me nos olhos. "É a barba por fazer, outrora me apresentava melhor, barbeava-me diariamente" – respondi ao intrometido espelho. "Por que não vais ao fundo do baú buscar aquela foto de quando eras jovem, ao invés de ficares me inquirindo sobre o que não posso omitir?".
Fingi não escutar a última insolência do espelho e rapidamente espalhei creme no rosto e lancei à barba a gilete. Usei loção-após-barba. "Vês como remocei? Que idade me dás, agora?". O espelho balbuciou com enfado e pausadamente, como se falasse consigo mesmo: "Expressão vincada... pés-de-galinha... pele flácida embaixo do queixo... no pescoço... essa barriguinha...".
Não pude deixar de sentir uma certa irritação e resolvi partir para o ataque, pois que o ataque é a melhor defesa: "Olha só quem fala, com as bordas já oxidando! Não te enxergas não, estraga-prazer?". "Oxidação é um processo natural de envelhecimento, e já que tocaste no assunto, tu bem sabes o quão amiga ela é de ti." – revidou sarcasticamente o espelho.
"Ok, ok, ok! Basta! Afinal estou convencido: vou mudar de espelho.".

Janeiro de 2010

18 de jan. de 2010

Cacos da Memória – o livro




Venturas e desventuras de uma família de imigrantes – texto fragmentado em episódios curtos e de fácil leitura, não obstante interligados pelo histórico familiar. O dia-a-dia numa aldeia portuguesa (Palhal - Ribeira de Fráguas); a escassez de empregos e as lavouras de subsistência; emigração; histórias da tradição oral, festas religiosas e eventos pitorescos; a vizinhança; trapalhadas e brincadeiras da infância e as fantasias e descobertas de um menino e o seu desempenho escolar. O Brasil aos olhos dos que ficam. O sonho nunca alcançado. O retorno.


***************************************************************************************************************






Divulgação de "Cacos da Memória" no evento cultural Literatura de Segunda, promovido pela ONG
Laboratório Cultural
*****************************************************************************************************************************************
Depoimentos
Caro Ventura. Li o seu livro... A questão de não decorar a tabuada é insignificante. Até hoje ainda tem uns professores que reprimem os alunos por causa disso. Felizmente não fui vítima da palmatória. Gostei da estória do gato caçador. Sua mãe defendendo o gato foi muito legal...
Lourival Gomes de Oliveira (VAVÁ) - professor e jornalista
... estou lendo o seu livro e é fascinante...
Daiane Brasil - universitária e coordenadora da ONG Laboratório Cultural
... Já dei uma espiadinha no seu blog e, vendo a foto de "Cacos da Memória" me lembrei de quanto foi prazeroso lê-lo. Todos aqui em casa leram o livro e sempre comentávamos as histórias depois, pedindo à minha avó que contasse mais alguns detalhes. Rimos, choramos, enfim, nos comovemos muito.
Luciana Carvalho - arquiteta e sobrinha linda
Muito obrigada uma vez mais pela oferta do livro. Para já está a ser uma grande aventura a leitura. Muitos parabéns. Seguem hoje duas publicações de minha autoria...
Nélia Oliveira - historiadora (Branca/Portugal)
Olá bom dia, eu sou a filha mais nova da Guilhermina Nunes. Eu tive o prazer de ler o livro que o senhor escreveu, gostei muito, pois tem lá partes da sua infância que tb são muito parecidas com a minha. O meu muito obrigada pelo seu maravilhoso livro... Beijinhos. Tita.
Tita Martins - (Portugal/Alemanha)
"...Não imaginas a ansiedade com que esperei a recepção do teu livro! Recebi-o só anteontem e "devorei-o", em pouco tempo! Contribuiste para que me tornasse menino outra vez! Lembraste-me algumas peripécias que os meus neurónios já haviam apagado. Mais uma vez te estou reconhcidamente agradecido..."
Ismael Coutinho - bancário e amigo de infância, personagem de Cacos da Memória- Aveiro/Portugal
"Hoje eu peguei no teu livro, livro lindo linda história, e resolvi emprestar..."
Ivon Carlos Bernardo - marceneiro e poeta - Rio de Janeiro

(...) "Estou pasmado com a capacidade de memorização deste homem, é claramente um dom que nos une, a memorização. (...) Cerca de meio século depois de o autor João Ventura ter vivido entre as freguesias da Branca e Ribeira de Fráguas, os registros que estão no livro são incrivelmente precisos, e estou à vontade para afirmar isto, pois como todos sabem, tenho duas monografias publicadas sobre lugares da freguesia, além de uma amiga comum, que escreveu um trabalho sobre a freguesia da Branca.
Com este fantástico título, "Cacos da Memória", este livro deveria fazer parte da atividade pedagógica do Agrupamento de Escolas da Branca, não que eu seja saudosista, mas os jovens ribeirofraguenses e branquenses iriam aprender bastante sobre as vivências de outrora.
A vantagem deste trabalho literário é que está escrito na primeira pessoa, ou seja é um "diário de bordo" entre dois continentes. Como homem profundamente ligado à etnografia, sociologia e antropologia, cada vez mais (...) avanço com a ideia de que o passado não é vergonha, mas orgulho.
Parabéns João. Abraço.

(...) Naturalmente, já li o seu livro. O português é fantástico. Sei que os brasileiros cultos (...) escrevem quase de igual modo ao português Pt/Pt...

Nuno Jesus - autor de "Telhadela - Perspectiva Histórica e Etnográfica" e coautor com Nélia Oliveira de "Ribeira de Fráguas - a sua história" - Portugal

Clic no link abaixo e leia uma resenha de Cacos da memória, escrita por Jussara Neves Rezende, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa e dona do blog Minas de mim. Leia também mais comentários sobre a obra.
http://minasdemim.blogspot.com.br/2013/05/cacos-da-memoria-de-joao-antonio.html

"...O rigor sociológico, diria, etnográfico, estampado neste livro é deveras incomum, particularmente para quem nunca mais visitou a aldeia na qual passou parte da sua mocidade e que, nota-se na fluidez da leitura, o marcou de forma indelével"
(Excerto do comentário de Nuno Jesus em Minas de mim)

Estou na faculdade estudando um pouco sobre metodologia científica, e a professora fala muito sobre o rigor sociológico e etnografia tb. Achei bacana esse comentário de um especialista sobre seu livro. Vou relê-lo agora nessa ótica, para tentar pegar essas nuanças que passaram-me despercebidas.

Rafael Coelho Ventura - biólogo, meu filho

Bom dia.
Passei os meus tempos livres destes últimos dias a ler o seu blog, adorei as suas histórias de infância, são viciantes, fiquei ainda com mais vontade de ler o livro. Se não lhe der muito trabalho gostava de saber quanto custaria enviar o livro para Portugal com portes, caso esteja dentro das minhas possibilidades combinamos a transferência e envio.
Cumprimentos,

Daniela Lapas - Aveiro, Portugal

**************************************************************************************************************

A quem interessar: ainda existem exemplares disponíveis
Se desejar, envie e-mail para antoniorodrigues25@superig.com.br juntando comprovante de depósito bancário no Banco do Brasil, ag. 3992-6, conta 5327-9. O valor total é de R$ 20,00 (15,00 + 5,00 para correio no Brasil. Para o exterior fica bem mais caro). Eu lhe enviarei o livro.

5 de jan. de 2010

A menina do guarda-chuva e os meus sapatos de verniz

Naqueles poucos dias que estive em Cunha, passei-os na casa de meu amigo Vavá, a quem visitava após mais de vinte anos sem contato. Levei um de meus filhos, Daniel, e ficamos confortavelmente instalados em suíte construída abaixo do pavimento principal da casa, no "porão", como dizia o meu amigo. Em frente havia girassóis e uma piscina, da qual não pude usufruir em virtude do clima de inverno. Bastaram-me os girassóis.
Levantava cedo e, com todos ainda recolhidos e ausência de café à mesa, saía andando pelos arredores, exercitando os músculos e aproveitando o ar fresco da manhã.
No dia em que retornaríamos ao Rio de Janeiro, um domingo, não foi diferente. Subi pela rua até onde terminava o asfalto e parei no cruzamento com a rua de barro, sem vontade de prosseguir: fazia frio, garoava, e o risco de escorregar no barro era grande, já que o relevo dali em diante apresentava aclives e declives acentuados. Um velhinho passou por mim expelindo vapores ao falar:
- Bons dias!
- Bom dia! – respondi.
As pessoas do interior, mormente as mais velhas, cumprimentam até quem nunca viram. Já nas cidades grandes...
Mas eu fiquei ali, encolhido no meu casaco de veludo, último remanescente de um passado em que frequentei a cidade e outras do Vale do Paraíba. Acendi um cigarro e olhei ao redor. Em frente, o caminho de barro continuava até subir um pequeno morro, entre casas modestíssimas e esparsas. Nada que se comparasse às favelas do Rio, porém ali moravam, com certeza, pessoas de precária condição econômica. À esquerda, um pequeno lago, assoreado e sujo, produto menos de nascente potável que de águas pluviais e talvez esgoto. Uma paisagem nada admirável.
Apaisagem nada admirável 5 anos depois: as ruas estão asfaltadas e o lago desassoreado e limpo. Ao fundo, o casario menos esparso e de melhor aspecto.

Olhei mais uma vez o sopé daquele morro. Uma figura, de guarda-chuva, caminhava em minha direção. Parecia uma menina. E muito bem trajada, o que me pareceu impróprio, vinda daquele lugar tão singelo. Caminhava com determinação e os seus sapatos, pisando o barro batido – úmido, mas firme – soavam nos meus ouvidos. Em dado momento, a menina (agora já era perceptível) diminuiu o passo, perdeu a determinação, parecendo-me indecisa ou receosa. Pensei: "já reparou em mim, reconheceu-me estranho ao lugar e intimidou-se com minha presença em seu caminho, já que sou a única pessoa na rua, além dela mesma". Resolvi afastar-me então, deixando o caminho à menina. Entrei na casa de meu amigo e postei-me na varanda, olhando a rua, curioso com aquela garota que descera do morro.

Os sapatos da menina agora soavam mais forte. Ela parou a conversar rapidamente com a vizinha e prosseguiu com o seu toc toc no asfalto. Passou.


Não tinha mais de onze, doze anos. O vestido preto, de tecido fino e bom caimento, um pouco acima dos joelhos, combinava com o guarda-chuva e os sapatos também pretos. Brancas, uma faixa prendendo os cabelos fartos, ligeiramente crespos e aloirados, e as meias de renda, compridas. Passos firmes e atitude de modelo desfilando moda na passarela. E ciente de sua elegância.
Do conjunto harmonioso destacavam-se os sapatos, com fivela e saltinho, estalando de novos e brilhando! Destacavam-se menos pelo que eram, mas pelo que diziam. Sim, os sapatos falavam, não com o asfalto, mas às pessoas: anunciavam a passagem da menina. Pareciam dizer: "olhem como está linda e elegante, olhem!".
Ao passar, a menina do guarda-chuva olhou discretamente para mim, e se foi
Seus sapatos falaram-me dela e de muitas coisas mais, de outros sapatos já esquecidos na minha infância longínqua...
Naquele tempo, eu queria porque queria sapatos de homem, não sandálias de menino. Já usava calças compridas, mas faltavam os sapatos. Mamãe comprou-me um par, a serem usados na minha 1ª comunhão. Sapatos de verniz, reluzentes! Não eram de cromo ou qualquer outro material nobre, mas tinham o acabamento "vitrificado", simulando verniz. Quando envelheceram, o "verniz" desmanchou-se em craquelê, pior que rugas em rosto de ancião, mas enquanto novos eram de causar inveja. Lindos!
Eu não podia esperar a 1ª comunhão. Sendo domingo, pedi à mamãe que me deixasse ir à missa em Ribeira de Fráguas, calçando os sapatos novos. Iria com a minha irmã Carmem. Autorizado, comecei a produzir-me: banho de bacia (resumia-se a lavar o rosto, orelhas e pescoço, braços e pernas); depois vestir calça, camisa e calçar meias e sapatos... Ah, os sapatos! Que complicado, eu mal sabia fazer o laço nos cadarços! Em vista de tudo isso, demorei muito e minha irmã não quis esperar-me, pois havia combinado ir com as amigas. Pois eu iria sozinho à missa, ainda que chegasse atrasado! Sozinho não: eu e os meus sapatos!
Chegamos já nos ritos finais da missa, mas valeu bem a pena: durante o longo trajeto e ali, no adro da igreja, tive a ilusão de que todos admiravam os meus sapatos de verniz!
Doce ilusão!...
Mas o que eu não sabia é que sapatos novos costumam magoar os pés e os meus ficaram magoadinhos: voltei para casa mancando!
Embora os sapatos da menina do guarda-chuva não me tenham dito aonde iam, eu não tinha mais dúvidas: dirigiam-se a um culto dominical. Mas pouco importa aonde ia a menina ou fazer o quê. Sua intenção, verdadeiramente, foi mostrar a toda gente os seus sapatos novos, seu vestido, sua elegância e a sua beleza pré-adolescente!
Aromas do café da manhã inundaram minhas narinas. Entrei.

Transcrito do livro "Cacos da Memória"
Autor: João Antonio Rodrigues Ventura
antoniorodrigues25@superig.com.br