29 de jan. de 2013

Mentir é sempre feio


Dei de presente a Yasmin uma bicicleta. Aro 24, um pouco maior que o ideal para sua estatura atual, mas nada que o abaixamento do selim não resolvesse.
E saímos às ruas de Marechal, ela como aprendiz, eu como instrutor, e a bicicleta como alvo das atenções e tensões de nós dois. Salvo os dois eixos principais, as ruas do bairro são tranquilas, com trânsito quase nenhum, propícias a treinamentos do tipo.
Segurei a bicicleta pelo selim e orientei a menina para que a montasse. E lá fomos.
- Me segura, vô!
- Estou segurando, olha pra frente e segura firme o guidão... e não para de pedalar, o giro das rodas é que dá o equilíbrio... e fica tranquila, estou segurando... E assim fomos, eu correndo ao lado, segurando a bicicleta e encorajando a garota.
Em dado momento larguei suavemente a bicicleta, mantendo a mão um pouco afastada do selim, mas pronta para segurá-lo a qualquer momento, se necessário. E entramos na próxima esquina, eu correndo ao lado, fingindo segurar a bicicleta, orientando e encorajando. E rodamos uma volta, e mais uma e outra mais, a menina andando sozinha e eu a fingir segurá-la. Era a minha estratégia para incutir autoconfiança à ciclista aprendiz. As pessoas que passavam sorriam...
Quando cansei, parei.
_ Vai, Yasmin, vai! Você já está andando sozinha, segurei só no início, depois fingi que estava segurando... Você já anda sozinha... e sem rodinhas... Parabéns!
A ciclista andou mais duas voltas cantarolando modas de escola, de tão alegre.
- Me segura, vô, pra eu parar.
E já parada, fazendo cara de zangada:
- Você mentiu pra mim! Mentir é feio, sabe não, vô?!
E eu tinha que ouvir isto de minha neta. Bastava o milagre, não precisava ter confessado o nome do santo. Aprende Vô Tônico!

17 de jan. de 2013

O que eu gosto no facebook


Se tem algo que gosto no face, é do português castiço escrito (e provavelmente falado) por alguns amigos de Portugal, nos comentários e posts na minha página. Digo "amigos", mas não os conheço pessoalmente, nem sei se os conhecerei algum dia. Amigos internautas; inimigos é que não serão, com toda a certeza.
Parece que lá em Portugal não pegou o internetiquês, essas abreviaturas, siglas e códigos esquisitos, às vezes difíceis para mim que falo e escrevo em português. Parece que lá as pessoas estão mais sossegadas (ou fingem estar), sem a pressa que por cá estraga o texto e empobrece a comunicação.
Às vezes nem compreendo totalmente a mensagem, por se tratar de tema local, geralmente sobre políticas públicas ou mesmo políticos e personalidades portuguesas. Mas leio.
Sei que vocês me dirão: "Ora, com poucas palavras e alguma criatividade dizemos tudo que eles demoram um período inteiro para dizer: ponto para nós!".
Pode ser. Mas eu leio os posts e comentários de lá pelo simples e puro prazer de ler um bom texto!
E não me perguntem sobre o que não gosto no face. Se for o caso, perguntem ao elefante sutil.

6 de jan. de 2013

O início da idade da razão


"Eu, o Ismael e dois dos Carriços resolvemos voltar da escola por caminho diferente: uma trilha subindo um monte de pinheiros, caminho pouco usado, porém mais reto e curto. O Ismael seguia falando de seus futuros projetos de engenharia, de máquinas, inventos, essas coisas. Os Carriços caçoavam dele. Eu, atrás, ouvia. Até que a conversa enveredou pelo mar.
O meu amigo já atravessara o Atlântico, fato que lhe conferia certa autoridade sobre o tema, ao contrário de mim, que também o fizera, mas ainda bebê. Ele falou de águas salgadas, praias, ondas, estranhos peixes, distâncias imensas, profundezas... Neste ponto entrei na conversa:
- O mar não tem fundo.
- Como não tem fundo? – questionou o Ismael.
- Minha mãe sempre diz que o mar não tem fundo – respondi-lhe.
- É lógico que tem! Tem de ter! Se não tivesse, a água toda sumia!
- Minha mãe diz que não tem!
- É claro que tem! Se tem água, tem fundo – apoiou um dos Carriços.
Calei-me: tinha lógica o que o Ismael e o Carriço diziam, tinha lógica... Fiz o resto do caminho em silêncio e pensativo: talvez nem tudo que minha mãe dizia fosse verdade...".

 

(FALANDO DE MAR – Cacos da Memória, Edição do autor, 2008, pág. 142)

 

Transcrevi o texto acima para relembrar o momento em que a lógica começou a penetrar na minha mente, discreta, mas muito clara. Certas coisas têm uma lógica intrínseca da qual não se pode fugir: se tem água, tem fundo, e bordas como a bacia em que me lavava aos domingos para ir à missa em Ribeira de Fráguas.
Esse momento acontece com todos nós, embora a maioria não se lembre em que tempo e circunstância ele ocorreu. O tempo é variável de pessoa para pessoa; eu teria, àquela altura, entre oito e nove anos, oito anos e meio aproximadamente. Os amigos do colóquio transcrito eram um pouco mais velhos, o que me leva a crer que a idade do início da razão está entre oito e dez anos. Idade boa para começar a aprender matemática.
Yasmin está com oito e meio, exatamente a minha idade naquele evento da minha infância. Da última vez que estivemos estudando matemática, ao final do estudo ela me disse com toda convicção: "a matemática é muito simples, é só repetição de números". E começou a demonstrar a sua teoria, contando: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 (...) 21 31 41 51 (...) 91 101 111...
Não sei exatamente o que ela percebeu nesses números, mas creio que já começou a pensar na aritmética; e se diz que é muito simples, é porque já começou a entender alguma coisa.
Certo, a matemática não é tão simples assim...
Desconfio, porém, que o pensamento lógico já esteja ameaçando invadir o cérebro da menina e instalar-se nele definitivamente. É a hora da matemática, mas Yasmin já está de pé atrás com ela. Ficou em recuperação, conseguiu safar-se. Ajudei no que pude.
Já eu, àquela altura do episódio de Cacos da Memória, estava na reta final de um retumbante fracasso escolar por causa da matemática e nem fui ao exame final. Não adiantava.

2 de jan. de 2013

Paciência é a melhor didática


Perguntei a um amigo professor se ele conseguia ensinar matemática a sua filhinha pequena. Não, confessou. Me irrito, perco a paciência...
Pois eu consigo ensinar matemática a Yasmin, disse-lhe, porque não sou pai, sou avô. As circunstâncias do momento não permitiram que eu desenvolvesse o que acabara de afirmar, o que pretendo fazer agora.
Também me irritava e perdia a paciência quando "ensinava" matemática a meus filhos pequenos. A responsabilidade de pai, a ansiedade perante a educação dos filhos, a pouca experiência, não me deixavam enxergar o que agora, como avô, me parece óbvio: ninguém ensina matemática a crianças pequenas.
O que fazemos – pais e professores da escola fundamental – é adestrar a criança nos conteúdos e procedimentos da matemática; adestrar como se adestra um cachorrinho, pela repetição, até a criança "aprender". Talvez com o cachorrinho seja até mais fácil, pois o adestramento, em geral, envolve uma recompensa, um biscoito, por exemplo, quando o adestrando obtém sucesso. Para a criança sobra, quase sempre (no caso de pais), irritação e impaciência, suspensão do lazer, castigo, etc.
Há que ter muita paciência no adestramento de crianças pequenas em relação à matemática.
Matemática é pura abstração, é pensamento lógico. Na idade mais tenra (talvez os três primeiros anos da escola básica) a criança ainda não tem essas ferramentas, portanto não aprende, apenas decora pela constante repetição. "Aprende" num dia, mas no seguinte já esqueceu. E haja paciência!
O ideal seria ensinar matemática apenas quando a criança estivesse mentalmente apta para tal. Mas como convencer matemáticos e autoridades educacionais numa sociedade industrial e tecnológica, altamente dependente das ciências exatas? Não tem jeito!
Portanto, continuemos a massacrar nossos pequenos com a matemática, até que eles alcancem a maturidade mental adequada para aprender realmente.
Ao alcançarem essa maturidade, muitos já estarão odiando a Matemática.