6 de jan. de 2013

O início da idade da razão


"Eu, o Ismael e dois dos Carriços resolvemos voltar da escola por caminho diferente: uma trilha subindo um monte de pinheiros, caminho pouco usado, porém mais reto e curto. O Ismael seguia falando de seus futuros projetos de engenharia, de máquinas, inventos, essas coisas. Os Carriços caçoavam dele. Eu, atrás, ouvia. Até que a conversa enveredou pelo mar.
O meu amigo já atravessara o Atlântico, fato que lhe conferia certa autoridade sobre o tema, ao contrário de mim, que também o fizera, mas ainda bebê. Ele falou de águas salgadas, praias, ondas, estranhos peixes, distâncias imensas, profundezas... Neste ponto entrei na conversa:
- O mar não tem fundo.
- Como não tem fundo? – questionou o Ismael.
- Minha mãe sempre diz que o mar não tem fundo – respondi-lhe.
- É lógico que tem! Tem de ter! Se não tivesse, a água toda sumia!
- Minha mãe diz que não tem!
- É claro que tem! Se tem água, tem fundo – apoiou um dos Carriços.
Calei-me: tinha lógica o que o Ismael e o Carriço diziam, tinha lógica... Fiz o resto do caminho em silêncio e pensativo: talvez nem tudo que minha mãe dizia fosse verdade...".

 

(FALANDO DE MAR – Cacos da Memória, Edição do autor, 2008, pág. 142)

 

Transcrevi o texto acima para relembrar o momento em que a lógica começou a penetrar na minha mente, discreta, mas muito clara. Certas coisas têm uma lógica intrínseca da qual não se pode fugir: se tem água, tem fundo, e bordas como a bacia em que me lavava aos domingos para ir à missa em Ribeira de Fráguas.
Esse momento acontece com todos nós, embora a maioria não se lembre em que tempo e circunstância ele ocorreu. O tempo é variável de pessoa para pessoa; eu teria, àquela altura, entre oito e nove anos, oito anos e meio aproximadamente. Os amigos do colóquio transcrito eram um pouco mais velhos, o que me leva a crer que a idade do início da razão está entre oito e dez anos. Idade boa para começar a aprender matemática.
Yasmin está com oito e meio, exatamente a minha idade naquele evento da minha infância. Da última vez que estivemos estudando matemática, ao final do estudo ela me disse com toda convicção: "a matemática é muito simples, é só repetição de números". E começou a demonstrar a sua teoria, contando: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 (...) 21 31 41 51 (...) 91 101 111...
Não sei exatamente o que ela percebeu nesses números, mas creio que já começou a pensar na aritmética; e se diz que é muito simples, é porque já começou a entender alguma coisa.
Certo, a matemática não é tão simples assim...
Desconfio, porém, que o pensamento lógico já esteja ameaçando invadir o cérebro da menina e instalar-se nele definitivamente. É a hora da matemática, mas Yasmin já está de pé atrás com ela. Ficou em recuperação, conseguiu safar-se. Ajudei no que pude.
Já eu, àquela altura do episódio de Cacos da Memória, estava na reta final de um retumbante fracasso escolar por causa da matemática e nem fui ao exame final. Não adiantava.

2 comentários:

Jussara Neves Rezende disse...

Gostei muito do trecho do "Cacos da memória". Talvez porque eu ame desde sempre Portugal, talvez porque eu mesma tenha morado um tempo lá, talvez porque a sua escrita seja mesmo gostosa de se ler...
Abraço!

Joao Antonio Ventura disse...

Jussara,você não imagina como fiquei feliz com o seu comentário; nem só pelo que disse, mas porque o disse. Nestes tempos de face book ninguém tem mais tempo para comentar. Há tempos não recebia um comentário! Agora é só kkkkkkkkkkkkkkkkkkk pra lá,rsrsrs pra cá,ou comentários engraçados, galhofas, brincadeiras (no face)...
Já anotei o endereço do seu blog e vou frequentá-lo.
Abraços.

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