28 de abr. de 2013

Nas matas de São Pedro

 
Outras estórias que eu gostava muito eram as que falavam de coisas do Brasil, a terra onde eu nascera e para a qual muitos queriam ir. O que eu sabia do Brasil, soube ao pé do lume...
Papai explorava as matas de São Pedro, (1) produzindo carvão, o combustível então usado no cotidiano doméstico da cidade do Rio de Janeiro. A madeira era derrubada a machado e cortada em tamanho adequado para a formação dos balões, método de queima bastante primitivo, mas não muito diferente do usado até hoje pelos carvoeiros. Eu ficava imaginando como seriam esses balões, a partir da descrição de minha mãe: a lenha era juntada cuidadosamente em montes, mais ou menos no formato das medas (2) de trigo; depois se revestia tudo com grossa camada de barro, deixando em cima um furo ou chaminé e na base alguns outros furos para entrada de ar e por onde se tocava o fogo. Depois da queima, desmanchava-se o balão, deixava-se arrefecer e ensacava-se o carvão, que era carregado em lombo de burro até à estação de São Pedro, para posterior embarque nos vagões da Estrada de Ferro Rio D’Ouro. (3)
Barro, fuligem, cinza. E suor, muito suor!
Mas nem só de carvão se ocupavam os empregados de papai: também plantavam abóboras nas terras desmatadas, como contrapartida à concessão carvoeira. Exigia-se o plantio de qualquer coisa e papai optou por abóboras, creio, por ser uma cultura pouco exigente em cuidados. Afinal, era carvoeiro, não agricultor. E bastava que chovesse para as plantas crescerem e frutificarem. Bastava que chovesse... Mas São Pedro, o santo, tinha lá as suas esquisitices e mandara chuva à farta sobre a gleba do carvoeiro vizinho e nem uma gota na sua. “Que falta de sorte, carago!” – pensava papai, olhando a sua plantação já então de futuro incerto. Todavia, a terra era generosa, ainda com o humo da cobertura florestal e a falta de chuva em sua gleba fora apenas episódica. Por conseguinte, os vagões da Rio D’Ouro carregaram grandes quantidades de suas abóboras e também de laranjas e melancias que ele contratava com agricultores locais para serem comercializadas na própria estação ferroviária de Coelho Neto, por meus irmãos Esmeralda e Benjamin.
O carvão destinava-se à carvoaria de papai, no mesmo subúrbio, onde morava com a família; ia a São Pedro uma a duas vezes por mês verificar o andamento dos trabalhos e pagar o salário de seus carvoeiros. Pernoitava com os trabalhadores em casa de pau-a-pique à beira da mata e, durante a noite, dizia ele, era comum serem visitados por uma onça pintada; a bicha rondava a casa, rosnava e arranhava a taipa onde o barro se desmanchara, afastando-se depois. Papai viu-lhe as unhas, os bigodes e pouco mais. Nem mais queria ver: não era caçador. E apesar de precária, a casa de taipa sempre o protegeu e a seus trabalhadores.
Sobre essas matas papai contava outra estória... Um dia, após o almoço, intrometeu-se na mata em busca de sombra e frescor, sentou-se distraído num tronco caído no chão e acendeu um cigarro. Já na primeira tragada sentiu o tronco embaixo de si mover-se, rabear! Quase que por instinto, levantou-se de um salto, sem saber o que acontecia e, ao voltar-se, constatou com espanto que o assento em que repousara não era um tronco, era uma cobra! E bem criada! Imensa! Devia ser uma sucuri em repouso após uma farta refeição. Papai viu a bicha afastar-se entre as folhagens, ondulante e pesadona. Ainda bem. Meu pai tampouco era caçador de cobras.


(1) São Pedro – Atual Jaceruba, bairro de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense; faz parte da Reserva Ecológica de Tinguá e limita com Japeri.
(2) meda – agrupamento de feixes de trigo, palha, etc., a que se dá forma geralmente cônica e que os ceifadores elevam nos campos.
(3) Estrada de Ferro Rio d’Ouro - Extinta em 1970, a ferrovia iniciava na ponta do Caju e chegava a São Pedro, Tinguá e Xerém. Em parte de seu antigo leito trafegam hoje os trens metropolitanos da linha 2.

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1 comentários:

Jussara Neves Rezende disse...

Estou a ler... devo andar pela metade... e gostando muito. Delícia encontrar em seu texto o palavreado usado em Portugal!
;)

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