24 de jun. de 2013

A Vênus de barro


 Viajava conosco e sob a responsabilidade de papai, um rapaz da aldeia por nome Manuel e apelido Neca. Na 3ª classe. Fomos visitá-lo. O camarote, coletivo, estava vazio; bisbilhotamos ao redor de seu beliche e descobrimos, sob o seu travesseiro, um objeto deveras estranho: uma estatueta de barro representando uma mulher nua. Imaginem... nua! Além disso, não tinha pernas - só coxas – e um dos braços decepado na altura do ombro! O outro braço sustentava uma bola na mão, ao nível do umbigo. Não tinha cabeça. Que coisa mais esquisita! E sob o travesseiro do Neca...
O rapaz confirmou: não era dele, alguém colocara aquela coisa sob o seu travesseiro. Com que intuito?
O alarme soou, não sei pela boca de quem: “Bruxedo! Só pode ser bruxedo!”. Sim, bruxaria, coisa feita contra o coitado do Neca...
Assim entendidos e no pressuposto de resguardar o amigo Neca, pegamos aquela coisa, fomos todos ao convés e a lançamos ao mar. Assim, nas profundezas, nenhum mal poderia causar.
Mais tarde queixou-se ao Neca, consternado, um companheiro de camarote:
- Desapareceu a minha Vênus, que eu mesmo fiz e levava com todo o cuidado para mostrar ao meu irmão, no Brasil. Guardei-a sob o meu travesseiro e sumiu. Quem poderia ter feito isso? Era uma obra de arte, tinha muito valor para mim, só para mim...
Ouvimos, mudos, as lamentações do infortunado artista...

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17 de jun. de 2013

Noutro Reino


Autor: Carlos Pais
Carlos Alberto Coutinho Pais nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 30 de janeiro de 1974.  Filho de Manuel Marques Pais e Teresa de Jesus da Costa Coutinho Pais, imigrantes portugueses. Ensino médio profissionalizante no CEFET-RJ, graduado em Engenharia de Telecomunicações e mestre em Engenharia de Produção pela UFF. Busca inspiração nos relacionamentos, na realidade cotidiana e na música. Apaixonado pela cultura.
Publicado na antologia SINGULAR – O país dos invisíveis, coordenada por Adriana Kairos, da ALEPA – A Literatura dos Espaços Populares Agora
www.aliteraturapopular.blogspot.com

          Em questões de tamanhos e números,
me liguei nas formas.
Dito rei, trono outrora,
destruí os castelos,
me embolei com embrulhos,
festejando enterros,
ruínas dos muros.

Ri para as pedras, em trilhas sumo.
Simbá provou êxtase,
João bebeu suco,
trovando violetas
sem rimas, nem rumos.

Levantei bandeiras, entre becos e vielas,
bocas e pernas, alcance despedida
morro acima, glamour na avenida
multidão multicor multiplica
os nós que não se encaixam, mas explicam.

Pedido: que vá, escorra
desgraça, não traga fumaça,
socorro.

São colares tirados da crua e viva teta
comédia, a tragédia, balança a rédea,
publica: esgotos e sangue,
poder, a política; mentira.

Num gol de cabeça, pensante, ativa
me disse: sabor de vitória;
tarefa cumprida.


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12 de jun. de 2013

PPP – Partido da Política Poética


Autora: Aline leite
É filha de uma das “Mães de Acari”. Sua irmã foi um dos onze jovens que desapareceram em 1990, mais uma vítima entre tantos de algumas tantas páginas negras de nossa história. Hoje, a funcionária pública, bacharel em Letras e autora do livro “Toque de Letra”, que não se deixou abater (ou mesmo, esconder) por conta do sofrimento da perda, nos mostra toda a força de sua sensibilidade, inquietação e comprometimento com as suas origens.

Publicado no livro Toque de Letra, da autora.


As minhas palavras serão sempre as do povo
E eu sou uma espécie de rodo, que puxa, limpa!
Uma espécie de esponja que absorve, suga
Os sentimentos de uma gente poeta
Que tem poema nos problemas,
Poesia na renda familiar,
Que rende frutos ao poeta
E frutas à fonte de inspiração.
Estou sempre de bem com esse povo
Que junta palavras pequenas, formando palavrões.
Sou deputada e meu partido eleva a importância das palavras,
faço política com elas!
Prometo ao povo ensiná-los a ver o mundo,
Mostro o seu ópio
E cumpro com palavras a produção de um mundo diferente,
Melhor para toda essa gente,
Mesmo que em poesia e imaginário.

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8 de jun. de 2013

Virginia

Autora: Dayse Castro
É estudante de Letras (UFRJ) e leciona Literatura Brasileira no Pré-vestibular de Nova Iguaçu – RJ.

Publicado na antologia SINGULAR – O país dos invisíveis, coordenada por Adriana Kairos, da ALEPA – A Literatura dos Espaços Populares Agora.
www.aliteraturapopular.blogspot.com

Virginia levando a breve vida
Vivendo vícios, vendo vultos,
A favor de um vintém.
Na avenida, ela, Virginia, vigia
Os varões cheios de volúpias
Vantajosos na vida
Varejando jovens virgens.
Os varões encontram Virginia
Não virginia, a virgem
Mas Virginia que faz vida
E que convida todos para a Vila.

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5 de jun. de 2013

Banco de Dados

Autora: Rozelene Furtado de Lima
Teresópolis/RJ – Poeta com diversos textos publicados em antologias nacionais e internacionais. Amante das letras e defensora da natureza.
www.rozelenefurtadodelima.com.br
Publicado na antologia SINGULAR – O país dos invisíveis, coordenada por Adriana Kairos, da ALEPA – A Literatura dos Espaços Populares Agora
www.aliteraturapopular.blogspot.com

Esquecer os fatos
Olvidar a história
Apagar a memória
Destruir os retratos
Nunca!
Estrelas piscando no dedo anel
Sambando na ponta do morro
Descendo cantando socorro
Grau colado na favela do céu
Chorei!
Por isso eu escrevo
Anoto nas agendas
Preencho as fendas
Desenho em relevo
Revivo!
Sabor temperado da amargura
Vencida luta do primeiro desejo
Os sonhos seguiram em cortejo
À custa de açoites e cultura
Desfiz!
O laço da miséria imposta
O molde tatuado no chocolate
A bala perdida no resgate
O medo selado na resposta
Bendigo!
O poder da mão do Criador
Fez a esperança companheira
E encaminhou minha carreira
Canto a favela onde eu for

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1 de jun. de 2013

A revolta da palmatória


Outono, início do ano letivo. Em virtude da adoção do regime misto, eu e outros tantos meninos fomos transferidos para a escola velha, na qual já estudavam as minhas irmãs Silvina e Rosa. Apresentei-me com os demais no período da tarde, após o jantar. Nós tínhamos uma hora e meia para a refeição, das 11:30 às 13, e, malgrado a distância entre nossa casa e a escola, ainda nos sobrava um tempinho para brincar no pátio. Antes de entrar na sala de aula eu já sabia da novidade: a palmatória sumira e a nova professora queria o instrumento de volta! Não se falava noutra coisa, mas eu e o Quim fomos brincar de rapa-tudo sobre o largo muro de arrimo que envolvia a escola pela lateral esquerda e aos fundos. A brincadeira consistia em rolar um dado e ganhar, ou perder, pontas de lápis de ardósia, com os quais praticávamos as quatro operações sobre pequenas lousas individuais do mesmo material. O dado, feito por nós mesmos (todo menino tinha um no bolso), não era cúbico, mas da forma de um paralelepípedo. Em suas faces principais lia-se: RAPA TUDO, PÕE 1, TIRA 1, PÕE 2. Todo jogo tem por natureza prender os jogadores envolvidos na disputa, de modo que deixamos entrar em aula toda a criançada e seguimos por último, já com algum atraso. Talvez por isso a professora nos incumbiu de resgatar a palmatória. Não só, mas também porque o Quim morava no Vale da Sapa, onde fora parar a palmatória, segundo apuração da mestra.
A palmatória sumira no final do período letivo anterior, quando já se sabia da substituição da professora. Ótima oportunidade para dar sumiço àquele instrumento abominável! Por idéia própria ou coletiva, uma aluna do último ano levara a dita para sua casa, talvez encorajada pelo fato de não retornar no período seguinte. As meninas exultaram – estavam livres daquele terror! A nova professora, contudo, não engoliu o fato consumado, inquiriu as meninas e soube da estória.
E lá fomos nós, eu e o Quim, à casa da garota que escondia a palmatória, devolvida sem dificuldades. De nada adiantara o seu feito. Tudo voltaria a ser como antes (E não é assim com a maioria das revoltas?).
No regresso resolvemos, espertinhos que éramos, retardar a chegada e assim ganharmos a tarde a vadiar: encurtamos o passo, paramos, colhemos morangos, bebemos água fresca e deitamos na relva a olhar os desenhos que as nuvens formavam no céu. Aquilo é que era vida! Por fim, molhamos o rosto para fingir suor e voltamos à escola ao final da tarde. Por certo a professora acreditaria em nossa simulação, já que nada sabia das lonjuras daquele lugar onde viera lecionar. Entregamos a palmatória à professora, que assim ficou devidamente aparelhada para exercer sua função pedagógica. Isto feito, sentamos numa carteira esperando o término da aula. Mas, pelo visto, a professora também era espertinha e não acreditou no suor dos nossos rostos, prolongando a aula o quanto pode. Nunca saímos tão tarde da escola!

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